Lais Myrrha lê seu texto "São muitos, milhares", uma reflexão sobre as mudanças nas formas de exploração do corpo do trabalhador, desde o período colonial, passando pela ditadura até chegar aos dias de hoje.
Lais Myrrha reads her text 'They Are Many, Thousands', a reflection on the changes of the ways in which the worker's body is exploited, from the colonial period, through the dictatorship until today.
#32bienal #camposonoro #artistasobreartista
Quisera que esses cantos de trabalho tivessem sido extintos. Não por causa dos cantos, é claro. Quisera que deles só restasse a solidariedade, a resistência, a vida comunal, a sonoridade dos cantos indígenas e dos pontos de candomblé. Mas deles resta o cansaço, a fadiga embalada não mais somente pelo barulho metálico das facas que cortam a cana e o cacau, ou pela batida oca do pilão e das mãos que moldam o barro nas casas de pau-a-pique. A fadiga, hoje, é embalada também pelo ruído dos ônibus e dos trens por dentro dos túneis, pelos carros com suas buzinas e agressões. O cansaço vem do peso das vigas de concreto, do trabalho ainda braçal de alargar tubulões, da esperança desfeita por aqueles que se recusam a sujar suas imundas mãos presas a bolsos abarrotados. A exaustão vem da jornada mal-acabada. Hoje, a fadiga parece mais solitária, cada par de olhos pregados numa pequena tela, os ouvidos tapados por fones para o som ao redor. Mas existem os sem telas; são muitos, milhares. Há o desânimo do grupo vigiando uma usina desativada, esperando não sei o quê. Uma estrutura que se altera tão lentamente, ou que no fundo não se altera tanto assim, muda sua aparência, muda a forma da exploração para continuar a dilapidar, a moer, a pisar e a engordar. Mas por baixo há qualquer coisa ainda inaudita sendo costurada, tramada; são muitos, milhares. Os cantos de trabalho não desapareceram, ainda ecoam no bater da laje que a vizinhança ajuda a construir, no ritmo dos gritos de alerta que acompanham os arremessos de tijolos de mão em mão, lembrando a Inconstância Material do tijolo, da obra, do homem. Nos cantos das lavadeiras que a voz de Clementina ecoa mesmo depois de sua partida, mesmo depois de ter deixado de trabalhar como empregada doméstica. Mas o homem na estrada, aquele que lançava os tijolos, restou mudo, anônimo, atrapalhando o tráfego. Por esses anônimos choraram e hão de chorar muitos, milhares. O choro é lamento, é música, é música-lamento que nasceu na periferia carioca nos fins do século XIX; Lá onde, provavelmente, foram morar muitos escravos recém libertos carregando consigo a memória das cantigas de trabalho, estas também recém libertas da conexão necessariamente direta e real com a servidão e com a peleja forçada. Desde de que foram libertas, essas cantigas puderam ser compartilhadas em rodas, com os filhos, os netos, os vizinhos, os amigos e se misturar aos cantos do candomblé e dos povos nativos do Brasil. Talvez tenham passado a embalar o sono de alguns dos instrumentistas populares que criaram o choro e, até eles próprios, talvez ninassem seus rebentos com estas canções. Não importa que nisso haja uma certa dose de fabulação. Já que a origem do choro é atribuída a músicos populares em sua maioria mestiços, eu diria de origem africana em processo de ascensão social, muitos deles já não executavam as tarefas brutas que impunha a casa grande aos seus ancestrais. Muitos destes musicistas e compositores nasceram de um ventre já livre. Não eram mais escravos, eram funcionários da Alfândega, dos Correios e Telégrafos, da Estrada de Ferro Central do Brasil que faziam sua música nas horas dedicadas só a ela. O choro é então um Abre Alas, porque nasceu da música criada por filhos e netos de ex-escravos e que tem como uma de suas importantes figuras uma mulher mestiça, abolicionista e divorciada que compôs a primeira marchinha de carnaval no limiar entre o século XIX e o século XX. Mais de setenta anos depois de Abre Alas ser composta por Chiquinha Gonzaga, em plena ditadura militar, Leon Hirszman filmou cantos de trabalho entoados na colheita da cana-de-açúcar, cacau e no mutirão. Neste terceiro quarto do século XX, uma década e poucos anos antes da comemoração do centenário da Lei Áurea, o que vemos é a persistência do trabalho árduo que em outros tempos era executado por escravos e que provavelmente, mesmo depois da abolição, seguiram sendo feitos pelos seus ascendentes em condições tão precárias quanto antes; quanto num tempo que dizemos no passado, mas que persiste em manter presente e inconfessa a escravidão. Os cantos de trabalho seguem ecoando em várias partes do mundo e se perpetuam não pela convivência em rodas de músicos, como as do choro, mas oralmente durante a labuta. Muitos, milhares continuam cantando para aliviar o cansaço e embalar seus os corpos colocando-os em sintonia com atividades duras e repetitivas. Esses cantos ajudam a manter seus corpos numa espécie de transe para que possam dedicar-se mais absortamente às atividades que os maltratam. Mas, pensando bem, há o mutirão onde mulheres, crianças, jovens e homens trabalham juntos para o bem-comum, para erguerem uma casa e proverem o alimento. No contexto da nossa última ditadura militar, esses cantos, ainda que os mesmos, soam como se fossem outros. A escolha dos trabalhos que compõe a trilogia de Hirszman não parece aleatória. Quem sabe a insistência do narrador em marcar a iminência da extinção desses cantos não seja também um desejo, um apelo a muitos, milhares. O trabalho bruto e exploratório realizado nas colheitas manuais de cana-de-açúcar e do cacau ensinaram pessoas a viverem com pouco e a partilharem os frutos e o trabalho para se viver desse pouco. O mutirão abre uma fresta para a mudança. Dos três filmes, o mutirão é o único cujo o fim não coincide com o término do canto que vai desaparecendo aos poucos, se misturando às falas e ao sons indistintos produzidos pelas crianças, mulheres e homens que carregam o barro. A música que resta é apenas aquela do som abafado das mãos que amassam, alisam e marcam a lama. A última cena é um plano fechado. Fechado num pedaço da parede de pau-a-pique, ainda molhada, cuja escala é dada pelo estriado feito com as pontas dos dedos de um trabalhador que abre alas na matéria informe.
English version
I wish these work songs had been extinguished. Not because of the songs, of course. I wish that the only part of them that remained were the solidarity, the resistance, the communal life, the sonorousness of the indigenous chants and the Candomblé hymns. But there also remains of them the exhaustion, the fatigue no longer lulled only by the metallic noise of knives cutting cane and cacao, or by the muffled thumping of the pestle and the hands shaping clay onto wattle and daub houses. Today the fatigue is also lulled by the noise of buses and trains in tunnels, by cars with their horns and aggressiveness. The tiredness comes from the weight of the concrete beams, from the still manual labor of widening tubing, from the hope dashed by those who refuse to sully their filthy hands stuck in overflowing pockets. The exhaustion comes from the never-ending workday. Today, fatigue seems more solitary, each pair of eyes glued to a tiny screen, ears blocked by phones to surrounding sounds. But there are the screenless; there are many, thousands. There is the disheartened feeling of the group guarding a deactivated plant, waiting for I don’t know what. A structure that alters so slowly, or that deep down doesn’t alter all that much at all, changes its appearance, changes its way of exploiting in order to continue to dilapidate, to grind, to crush and to fatten. But down below there’s something still unheard being sewn, being brewed; there are many, thousands. Work songs have not disappeared. They still echo in the pounding of the slabs that the neighbors help to build, in the rhythm of the warning cries that accompany the tossing of bricks from one hand to the next, recalling the Material Inconstancy of brick, of work, of man. In the songs of the washwomen echoed by Clementina ’s voice even after her departure, even after she stopped working as a housemaid. But the man on the highway, the one who used to lay down the bricks, has been left mute, anonymous, getting in the way of traffic. For these nameless ones, many, thousands have cried and will still cry. Choro is lamentation, it is music, it is a musical lament that was born on the outskirts of Rio de Janeiro in the late 19th Century, there where many recently freed slaves likely went to live, carrying with them the memory of the work chants, themselves recently freed from their necessarily direct and real connection with forced servitude and strife. Since they were freed, these chants were able to be shared in gatherings with sons and daughters, grandchildren, neighbors and friends and blend with the songs of Candomblé and of Brazil’s native peoples. Perhaps they went on to serve as lullabies for some of the musicians of the people who created choro, and perhaps they themselves sang their own children to sleep with these songs. No matter than this may have a certain dose of confabulation. The origin of choro is attributed to mostly mixed-race popular musicians, ones I would say were of African origin in the process of social ascension, many of whom no longer carried out the harsh physical tasks that the slave plantation imposed on their ancestors. Many of these musicians and composers were born of women who themselves were already free. They were no longer slaves, but rather customs, post and telegraph and Brazilian national railroad workers who made their music at times specifically set aside for the purpose. The choro is, then, a lead-in, because it arose from the music created by the children and grandchildren of former slaves and that has as one of its most important figures a divorced abolitionist mixed-race woman who composed the first Carnaval march as the 19th Century gave way to the 20th Century. More than seventy years after “Abre Alas” was composed by Chiquinha Gonzaga, Leon Hirszman, at the height of the military dictatorship, filmed work chants sung during the sugarcane and cacao harvests and during collective work gatherings. In this third quarter of the 20th Century, a decade or so before the commemoration of the one hundredth anniversary of abolition in Brazil, what we see is the persistence of arduous manual labor that in times past was carried out by slaves and that probably, even after abolition, kept being carried out by their descendants in conditions just as precarious as before, as during a time we say is in the past, but that persists in keeping slavery present and unspoken. Work songs continue to echo in various parts of the world and are kept alive not only by the conviviality of gatherings of musicians such as in choro sessions, but also orally, during labor. Many thousands continue singing to ease their weariness and lull their bodies, putting them in harmony with hard and repetitive activities. These songs help them keep their bodies in a sort of trance so that they can devote themselves more absorbedly to the activities that mistreat them. When we think about it, though, there is the communal labor in which women, children, young people and men work together for the common good, to raise a house or to provide food. In the context of Brazil’s most recent military dictatorship, these songs, albeit the same, sounded like something else. The choice of the works that make up Hirszman’s trilogy does not seem random. Perhaps the narrator’s insistence on marking the imminence of the extinction of these chants is also a wish, an appeal to many thousands. The brutal and exploitative work carried out in the manual harvesting of sugarcane and cacao taught people to live with little and to share the fruits and the labor in order to get by with such paucity. Communal work opens a window for change. Of the three films, the one portraying communal work is the only whose ending does not coincide with the end of the chant, which gradually disappears, blending into the speech and the indistinct sounds produced by the children, women and men who carry the clay. The music that remains is but that of the muffled sound of the hands that knead, smooth out and mark the mud. The last scene is a close-up, focused on a piece of wattle and daub wall, still wet, the scale of which is given by the grooves made with the fingertips of a worker who opens the way into the shapeless materials.
Autoria e narração / Authorship and narration:
Lais Myrrha
* Os áudios do Campo Sonoro foram transcritos e/ou editados visando uma leitura mais acessível / All Soundfield's audios were transcribed and/or edited aiming to produce accessible contents