Carolina Caycedo conversa com Louise Lobler (Movimento de Atingidos por Barragens) sobre as consequências da construção de barragens nas sociedades brasileira e colombiana.
Carolina Caycedo talks to Louise Lobler (Movimento de Atingidos por Barragens) about the consequences of dam constructions for the Brazilian and Colombian societies.
#32bienal #camposonoro #coletividade
Canoa canoa desce
No meio do rio Araguaia desce
No meio da noite alta da floresta
Levando a solidão e a coragem
Dos homens que são
Ava avacanoê Ava avacanoê
Avacanoeiro prefere as águas
Avacanoeiro prefere o rio
Avacanoeiro prefere os peixes
Avacanoeiro prefere remar
Ava prefere pescar
Ava prefere pescar
Dourado, arraia, grumatá
Piracará, pira-andirá
Jatuarana, taiabucu
Piracanjuba, peixe-mulher
Avacanoeiro quer viver
Avacanoeiro só quer pescar
Dourado, arraia e grumatá
Piracanjuba, peixe mulher
Carolina Caycedo – Eu queria começar falando sobre o rio Yuma, que é o rio mais importante da Colômbia. O rio Yuma nasce às montanhas do sul da Colômbia, o Macizo Colombiano. É um lugar muito especial que se chama Estrella Hídrica. O rio Yuma é uma medula, é a coluna vertebral, o centro. 80% das pessoas da Colômbia vivem nas ribeiras do rio e toda a economia colombiana está baseada no rio. É, portanto, um rio que está muito contaminado, com muito sedimento. Há quatro anos o governo colombiano comissionou a uma empresa mista, que se chama Hydrochina, um estudo de aproveitamento do rio, que se chama Plan Maestro de Aprovechamiento del Río Magdalena [Plano Mestre de Aproveitamento do Rio Magdalena]. E nesse Plano Mestre se contemplam dezessete represas. Toda a parte baixa seria convertida em uma hidrovia. Isso suporia uma mudança total na cultura do rio Yuma ou do rio Magdalena, que é um rio onde anteriormente havia muita pesca, o que eu chamo de agricultura comunitária, porque as pessoas cultivam coisas ali e nas ilhas do rio. E por constituição os rios são espaços públicos de todas as colombianas e todos os colombianos. Mas com o Plano Mestre há um processo de privatização. Dessas dezessete represas já existem duas e há outras em processo de licenciamento ambiental. Há uma manipulação da informação muito grande de parte do governo e das empresas, dizendo que se não se construir essas usinas a Colômbia vai entrar em uma crise energética. A verdade é que a eletricidade que essas usinas vão produzir vai ser para fraturamento hidráulico, para mineração. No ano de 2012 eu leio uma notícia que dizia: “O rio Magdalena não se deixa desviar”. Não entendo, porque o rio Magdalena é um super rio, grande, grande. E eu pensava: “como vão desviar um rio? Para quê?” e entendi que queriam desviar o rio para construir a usina hidrelétrica El Quimbo. E esse foi o ponto de partida para começar a pesquisar sobre as barragens hidrelétricas planejadas. Já pude ir ao território onde se estava construindo El Quimbo, que já está terminado e já está produzindo eletricidade e passou a operar no ano passado, e comecei a compartilhar também com a comunidade atingida e a vincular-me mais aos processos de base e da organização de base e de luta. E a entender como, como artista, que é minha profissão e minha disciplina, como podia participar dos processos de organização de base. E tem sido como encontrar um sentido para fazer arte, um sentido que me amarra também ao território, à terra, às pessoas, à água, à vida. E também, a partir desses processos de organização, fui entender que eu não moro às beiras do rio e também sou atingida. Porque, no fim das contas, se o rio é represado, barrado, toda a cultura e a organização social da colômbia se transforma. E atinge a todos, a toda a população. Eu queria te perguntar sobre a tua história de impacto da barragem. Você me dizia que você também é impactada por uma barragem.
Louise Lobler – O Movimento dos Atingidos por Barragens nasce da luta do povo que defende os rios. Daquele povo que tem do rio a sua casa, que depende do rio e que convive muito bem com ele livre e não com ele barrado. No início dos anos 1990 o Movimento dos Atingidos por Barragens fez o seu primeiro encontro, aonde tinha representação de vários estados no Brasil, e ali perceberam que o problema era comum entre os lugares. O problema e a violação do direito daquelas pessoas é o mesmo. Muitas das empresas que constroem e violam os direitos são as mesmas. Então foi nessa percepção que se chegou à conclusão e à criação do que hoje nós conhecemos como MAB, como o Movimento dos Atingidos por Barragens. E eu particularmente passei por isso entre os anos de 1996 e 2001, aonde veio o projeto da barragem, a construção, o desvio do rio. É uma forma tão cruel de violação dos direitos que um dos primeiros a ser negado ao povo é de dizer não. E quando a barragem ficou pronta em 2001 uma das coisas muito fortes é de que... por exemplo, a minha família: nós perdemos a casa onde morávamos, a comunidade onde tinha os vizinhos, os amigos a escola, a igreja e tudo ficou debaixo d’água. Isso aconteceu no Rio Grande do Sul, no rio Jacuí com a construção da usina hidrelétrica de Dona Francisca. E eu lembro até hoje que antes de fecharem o muro da barragem nós fomos lá na casa nos despedir daquele lugar, nos despedir daquele rio que nós convivíamos, que ia ser afogado. E que a partir daquele momento aquela região, a nossa casa, a terra da comunidade, o rio aonde a gente tomava banho, aonde lavava a roupa, aonde pescava, não era mais do povo, era da empresa, dos construtores, era do capital. E ali que a gente percebeu que valia a pena lutar para que outras famílias não precisassem passar por isso. Para que outras pessoas conseguissem compreender que elas têm força, que elas têm direito e que juntas nós construímos o Movimento dos Atingidos por Barragens. E que hoje é fundamental perceber a luta que o povo faz mesmo não tendo muita condição. A relação que os ribeirinhos, que os caiçaras têm com o mar, com o rio, com aquela vida com a natureza é uma coisa que essas empresas desconsideram completamente. Porque não existe para eles uma vida, não existe para eles uma história, não existe para eles uma identidade. Existe para eles uma água que pode ser barrada, que pode gerar energia e que pode dar lucro.
Carolina Caycedo – Eu sei que também o MAB tem feito processos de formação artística, tanto no campo audiovisual, mas mais recentemente um que eu adoro, que foi todo o projeto das arpilleras. As arpilleras são os sacos onde se armazenam produtos alimentícios, as sacolas de juta. E então, na parte norte do Chile e na Bolívia, desde o começo do século passado as mulheres bordavam sobre estes sacos. Bordavam as cenas da sua vida familiar. Nesses momentos no campo os camponeses não tinham acesso a uma máquina fotográfica, mas essa era uma forma de fazer fotografia: bordavam um sucesso familiar. E as mulheres iam armando sua história através de imagens. Durante a ditadura no Chile, as mulheres militantes seguiram fazendo arpilleras com uma intenção política de várias maneiras. Uma, para comunicar-se com os presos, as pessoas que estavam dentro da prisão. Mas também foram uma forma de denúncia de desaparições, de estupros, de tortura. Uma forma que parte do trabalho têxtil feminino e se estabelece, cresce e toma uma força. Mulheres artistas de outras nacionalidades usam também a técnica da arpillera, que é normalmente um bordado ou um aplique e se forma através de uma imagem, se conta uma história particular.
Louise Lobler – É, nós acreditamos que fazer arte é construir a revolução. A produção cultural contribui nesse processo de emancipação do povo e de formação da consciência desde que seja feita com o povo, pelo povo. As arpilleras vieram de uma inspiração das arpilleras chilenas e nós conseguimos enxergar nelas uma forma de resistência. Que a arpillera é uma forma de demonstrar através da costura, das linhas, dos tecidos o que você sente, o que você vê. Então nós construímos esse projeto, que ainda nas regiões é uma forma de denúncia, não só com a relação da vida, da identidade com o rio, a violação dos direitos, a questão da mulher, do empoderamento da mulher, da emancipação. Mas no final nos acreditamos que é só um dos passos. A arpillera e a decisão nossa de trazer isso para dentro do movimento, de trabalhar a arpillera como uma produção cultural de resistência e de denúncia com a base, nos trouxe muito mais do que o produto, do que a arpillera. Mas nos trouxe naquelas mulheres a esperança, a vida que elas acreditam, que elas lutam, que elas denunciam. Que é uma forma de você conseguir gritar, colocar para fora, derrubar esse muro, derrubar essa barragem.
Autoria e narração / Authorship and narration:
Carolina Caycedo, Louise Lobler
* Os áudios do Campo Sonoro foram transcritos e/ou editados visando uma leitura mais acessível / All Soundfield's audios were transcribed and/or edited aiming to produce accessible contents